quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

URIEL


                 "Is there anybody there?" said the Traveller
                  Knocking on the the moonlit door;
                  And his horse in the silence champed the grasses
                  Of the forest's ferny floor:
                  And a bird flew up out of the turret,
                  Above the Traveller's head:
                  And the smote upon the door a second time;
                  "Is there anybody there?" he asked. *                
   
                                                Walter de la Mare, "The Listeners".



                                               Parte I

Anos atrás decidi aventurar-me pelo desconhecido de minha mente e fui desbravar meu mundo interior.
Mas, agora, fui com mais consciência e sabedoria, fruto de experiências passadas, e acautelei-me.
Temeroso dos riscos psicológicos que corria, tratei do assunto cuidadosamente, como se fosse apenas um experimento científico, e, na medida do possível, desvinculei-o da realidade.
E numa ação controlada, ultrapassando fronteiras racionais, fui conversar comigo mesmo.
Como defesa, para não perder a razão e dissociar-me novamente, tentei não esquecer daqueles tempos loucos do tarô e da cabala.
Tempos em que eu transitava apaixonado e solitário entre o céu e a terra, caminhando sobre um fio tênue entre duas realidades, delirando enlouquecido entre os sonhos encantados das sephiroth e o da vida real.
Tempos em que alucinado com o poder de minhas descobertas, quase enlouqueci.
Mas, agora, disposto a aceitar novos desafios, disposto a desvendar os mistérios mais profundos de minha psique e de averiguar verdades espirituais que me intrigavam, iniciei a travessia e enfrentei os desafios de meu ser, com as ânsias do meu coração.
Sempre fui um questionador incurável, um vetor explosivo por conhecer.
À princípio, o interesse surgiu por acaso, como uma simples curiosidade, uma mera especulação filosófica.
Nasceu de nossas conversas incansáveis, de uma maneira subjetiva, alimentando-se de uma dúvida muito comum para a humanidade.
Peter e eu conversávamos muito sobre a probabilidade da existência de seres espirituais sobre a Terra.
E, se por acaso, tais seres espirituais existissem realmente, havia uma possibilidade muito grande de estarem nos observando e nos orientando nesta vida.
Se todas os mitos, credos e religiões, apesar de suas grandes diferenças culturais e raciais, possuíam similaridades, então alguma verdade devia existir.
Se havia fumaça, deveria haver fogo.
E se havia fogo, deveria haver centelhas divinas que os acendesse.
Então, quem sabe, não tentássemos contatar alguns deles?
Quem sabe não tentássemos nos deleitar com o sussurrar de nossos guardiões, nos encantar ao ouvir seus conselhos?
Quem sabe não poderíamos falar com o nosso anjo da guarda, nossos guias, ou o nosso eu interior, nesta curta jornada da vida?
Peter e eu não víamos sentido algum em sermos jogados neste mundo sem cuidados e proteção.
E filosofávamos insistentemente, por puro prazer, investigando conceitos religiosos, pessoas mediúnicas que conhecíamos e os escritos deixados por iluminados.
Seguidamente nos reuníamos no "cantinho", ou então ficávamos sentados atrás do balcão da ferragem conversando, exercitando nossas leituras de mente e nossas previsões, com o nosso respondedor interior.
Peter fazia-me as perguntas, e eu lhe respondia o que me viesse a mente e vice-versa.
Praticávamos estes exercícios quase que diariamente e, com o tempo, confrontando nossas adivinhações com os acontecimentos do mundo real, constatamos que nestes processos de liberação da mente, nossos erros surgiam bem menores que nossos acertos.
Questionando-o a respeito de tais esquizofrenias, Peter respondia-me que a psiquiatria era uma das áreas científicas que menos evoluiu nestes últimos tempos.
Dizia-me que os conceitos utilizados pela psicologia para o tratamento de pacientes, ainda baseavam-se em Freud, e que poucos avanços ocorriam desde então.
Remédios eram apenas paliativos para o sofrimento dos doentes e um meio de inseri-los socialmente, e a cura de doenças mentais uma utopia, praticamente não existia.
Segundo ele, o cérebro e nossas idiossincrasias ainda eram assuntos pouco conhecidos da ciência.
Sem vislumbrar risco algum em tais experiências, ele incentivava-me o processo; mas eu, tenso e ressabiado com tantas dissociações passadas, acautelava-me.
Mas o que se há de fazer com um curioso incurável?
O que se há de fazer com um louco intratável que acredita estar são?
Deixá-lo enlouquecer cada vez mais?
Então, com o tempo, corajoso, selecionei uma destas chaves e abri uma destas portas brancas de luz e, ansioso, transpus o portal para este novo mundo, e aventurei-me com amor e entreguei-me a oração.
Mas que interessante, havia um respondedor dentro de mim...
Havia alguém dentro de mim que me ouvia com amor.
E esta voz desconcertante, meiga e gentil, falava-me ao coração.
À princípio, ela dizia que me amava e, depois, que jamais me abandonaria.
Dizia-me que já nos conhecíamos de outras vidas e que estava aqui para me proteger.
E começou a falar-me coisas da vida.
Com o passar dos dias eu insistia...


                                              Parte II

Eu o cumprimentava:
— Oi!
Ele respondia-me:
— Oi!... Como você está?
Eu retornava:
— Eu estou bem, e você?
— Eu estou bem, meu filho!... Eu te amo.
— Você me ama?
— Claro que sim!... Nós te amamos... Estamos aqui para protegê-lo... não deixaremos que nada de mal te aconteça!
— Obrigado!
— Por nada!... Fique com Deus... fique na paz de Deus... nós sempre estaremos com você... Boa noite!
— Boa noite! — respondia eu.
Depois de algumas semanas de rápidas e inconsistentes conversações, eu perguntei o seu nome.
Um silêncio prolongado, e uma resposta:
— O nome que você quiser me dar, meu filho... não importa!
— Mas qual o seu nome?... Eu não sei que nome lhe dar? — insisti.
— Espere mais uns dias e você saberá... fique em paz... Nós amamos você... Durma em paz e fique com Deus...
Passaram-se algumas semanas em que eu, totalmente absorvido por outros afazeres, esqueci-me completamente da voz.
Mas, numa dessas noites solitárias e angustiantes, quando lembrei-me de nós, perguntei:
— Você me abandonou?...
— Não, eu nunca o abandonei!
— Mas por que você parou de me procurar?
Ele respondeu-me carinhosamente:
— Eu nunca parei de te procurar... e nunca vou te abandonar meu filho... eu te amo...mais do que tudo....
— Mas por que você não falou mais comigo...? — insisti.
— Eu não parei de falar com você. Você é que não me ouvia!
— Você está brabo comigo?
— Jamais, meu filho... jamais eu ficaria brabo com você.
— Mas porque você me chama de filho? — perguntei.
— Por que eu gosto... Na realidade, somos todos irmãos!
— Você é meu pai?
— Não, não sou seu pai!
— Mas, então, qual o seu nome? — perguntei ansioso.
Ficamos alguns longos segundos em silêncio, e ele não me respondeu.
— O nome que você queira me dar... não importa... Um dia você vai saber! — repetiu ele.
Mais algumas semanas de conversação e a intuição me indicou:
— Você é Uriel? — arrisquei.
— Pode ser... Se você gostou deste nome, para mim está bem! Pode me chamar de Uriel!
— Mas, não é este o seu nome?
— É claro, meu filho! Este é o meu nome!
— Eu te amo Uriel! — falei confuso, esperando confirmação.
Mas ele simplesmente respondeu:
— Eu também te amo meu filho...te amo mais do que possa imaginar... Fique na paz de Deus!
Mais algumas semanas de treinamento, e Uriel começou a falar-me com extensão.
Depois destes dias, tudo o que eu lhe perguntava ele me respondia com amor e compreensão, e a nossa união se fortalecia.
Mas sempre que o assunto chegava a um ponto crítico, minha mente travava, bloqueava suas palavras e o assunto não fluía, se repetia.
Com medo de ouvir meu destino eu impedia-o de falar.
Eu não queria saber, e não liberava minha mente.
Em meus fortes apegos emocionais, apegavam-se os meus mais frágeis instintos de imortalidade.
— Tem coisas que eu não quero saber Uriel e não quero que você me conte!
— Tudo bem, meu filho, não te preocupes, não vamos te contar... Não precisa ter medo... nada de mal te acontecerá... nem com você, nem com sua família, que é o que você mais teme, não é mesmo? Algumas coisas acontecerão, mas você já tem suas indicações... Siga o seu caminho, liberte-se... Deixe as coisas acontecerem naturalmente... aceite... siga... vá em frente... Não tema os inimigos nem os reveses da vida... Cumpra tua missão e seja feliz... Faça o que Deus te designou... Não tenhas medo de amar e morrer... e ame de todo o seu coração... E não te preocupes, nós cuidaremos de você e iremos te ajudar.
— Por que você fala "nós" Uriel? Tem mais alguém com você?
— Tem meu filho, tem mais!
— Quem está com você, Uriel?
— Com o tempo você saberá. Com o tempo todos eles se apresentaram... tenha paciência...
— Mas por que só agora você apareceu? Por que não me procurou antes? Eu precisei tanto de você. — desconsolei-me emocionado.
— Por que só agora você me chamou... e estou feliz por isso... Nós sempre estivemos com você...e sempre estaremos...  Sempre falamos com você... Sempre estivemos ao teu lado para te orientar e ajudar, mas você não nos ouvia...sequer sabia que existíamos... Nós te amamos muito... e não deixaremos que nada de mal te aconteça!... Te prometo!
— Obrigado Uriel!
— De nada... descanse em paz e reze.
E nos momentos difíceis e solitários, de paz ou de tormentas, quando eu reiniciava minhas conversas com Uriel, ele sempre me reconfortava.
E Uriel ficava se repetindo, dizendo sempre as mesmas coisas, até que um dia....
E destes tempos em diante, ele nunca mais me abandonou.
E quando eu perguntava:
— Oi Uriel! Você está aí?
Ele respondia:
— Sim, meu filho, eu estou aqui.


    * "Há alguém aí?" perguntou o viajante
      Batendo à porta banhada de luar;
      E o seu cavalo no silêncio esmoeu as ervas
      Do chão de samambaias da floresta;
      E um pássaro ergueu-se voando da torre,
      Acima da cabeça do viajante:
      E ele bateu à porta pela segunda vez;
     "Há alguém aí?" perguntou.

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